Páginas

segunda-feira, 30 de março de 2015

Metáforas e símbolos no folclore da Semana Santa

Ciclo da Semana Santa no Folclore Brasileiro
Tempo simbólico, cheio de “coisas proibidas e coisas que dão sorte!”

Quaresma
É o período  intermediário entre o fim do carnaval na 4ª feira de cinzas e a ressurreição de Cristo no domingo de Páscoa. Para os cristãos são 40 dias de penitência, oração e jejum destinados à preparação para a Páscoa.  Na realidade, 46 dias corridos mas os 6 domingos não contam porque  já são dias santificados.
Quaresma é abreviação da palavra “quadragésima” da frase em latim QUADRAGESIMA  DIE CHRISTUS  PRO NOBIS TRADETUR (No quadragésimo dia Cristo será entregue por nós).

A quaresma surgiu cerca do ano de 350 d.C. quando a Igreja aumentou os  dias de preparação para a Páscoa que eram até então só 3: quinta, sexta e sábado - o Tríduo Pascal.

No imaginário popular, inconscientemente, quaresma é a representação de um tempo simbólico,  tempo de  expiação da culpa da humanidade por ter entregue Jesus à morte – uma ideia construída pela Igreja. A quaresma é repleta de mitos: pode aparecer lobisomem, casamento realizado não dá certo, comer carne vermelha é pecado e outros.

Na quaresma acontece uma notável expressão do catolicismo-folclórico chamada Recomenda de Almas, Encomendação das Almas ou Penitentes. Constitui grupos de pessoas que cumprem um ritual no qual se articulam significados religiosos, mágicos e simbólicos a partir do conceito alma dos mortos  na visão popular. Nas sextas feiras  da quaresma, tarde da noite, no silêncio e  na escuridão, culminando na sexta feira da Paixão, estes grupos percorrem casas, igrejas (fechadas nessa hora), cemitérios, cruzeiros ou capelinhas de beira de estrada, pedindo orações para as almas perdidas, por meio de uma cantoria específica. Geralmente são almas de pessoas que não tiveram morte natural como os assassinados, queimados, os afogados – estes, “as almas das ondas do mar”. Em alguns grupos os componentes, que podem ser homens e mulheres, cobrem o corpo com um lençol branco simbolizando a  mortalha. Quando cantam diante de uma residência, os habitantes não devem acender as luzes, abrir portas ou janelas nem se comunicar com os cantores pois correm o risco de ver as almas  penadas  que os acompanham.
A matriz das Recomendas de Almas está no culto aos mortos presente nos ritos funerários de culturas ancestrais que com o advento do cristianismo  foram reinterpretados de acordo com as normas da Igreja. 
A música vocal é uma harmonia composta de várias vozes, às vezes até sete, em estilo responsorial. E o acompanhamento instrumental é feito com matracas,  algumas vezes com o zumbidor também chamado berra-boi. Este é um pequeno artefato retangular achatado construído de madeira, cerâmica ou pedra que, amarrado na ponta de um barbante e girado no ar sobre a cabeça do executante (um aerofone livre, portanto) produz um som forte, insistente e perturbador. É conhecido desde culturas muito antigas e nos mais diferentes lugares, como Austrália, Europa, África, índios sulamericanos. Curioso é que é sempre proibido às mulheres ouví-los e mais ainda, manuseá-los.
A matraca tem origem antiga, no Oriente, na Índia, China, Japão, Tibet e no meio muçulmano onde substituía as campainhas, proibidas pelos cristãos. Na Europa, derivou da norma proveniente da Igreja romana que proibia tocar os sinos das igrejas da quinta-feira santa ao sábado de Aleluia em respeito à morte de Jesus. A determinação apareceu no século VIII. Sua padronização, porém, se deu nos fins do século XII, início do século XIII.  Quem divulgou a interdição na França foi Simphosius Amarilius (aluno de Alcuíno), que determinou aos fiéis que se contentassem em bater pedaços de madeira, imitando o que faziam os cristãos primitivos reunidos nas catacumbas para os rituais religiosos, por falta de sinos. Em conseqüência, apareceram e se tornaram populares variados tipos de matraca (Lima, 1971).

A Semana Santa
Ao lado das cerimônias oficiais promovidas pela Igreja católica, encontram-se, com muito vigor, os rituais e costumes espontâneos da Semana Santa praticados no contexto  da cultura popular-folclórica. São um conjunto complexo de elementos que resultam da reinterpretação popular dos textos evangélicos e de conceitos europeus anônimos surgidos em algum momento da Idade Média. Por exemplo, no século VIII a Igreja proibiu os cristãos de tocar sinos (e músicas profanas) da 5ª feira ao sábado de Aleluia. Sugeriu que os substituíssem batendo pequenos pedaços de madeira como faziam os fiéis escondidos nas catacumbas quando não possuíam sinos e eram perseguidos pelos soldados romanos. Essa teria sido a origem das matracas que se tornaram instrumentos oficiais da Semana Santa.
Dentre os rituais folclóricos da Semana Santa podemos observar as grandes procissões: a do Enterro, conduzindo o esquife do Senhor Morto, cheia de figuras bíblicas, com a participação da Verônica que canta exibindo o sudário com o rosto de Jesus desenhado com  sangue; a das Dores que é o encontro de Nossa Senhora com o Filho;  aquelas chamadas de Fogaréu, onde se conduzem tochas acesas para simular a procura de Jesus para que seja preso, e outras –  organizadas pelo povo, não pela Igreja.
 Da mesma forma, as representações teatrais da Paixão de Cristo efetuadas pelas coletividades por iniciativa própria que podem se constituir em grandiosos espetáculos populares.

Há um grande número de proibições, crendices e práticas mágicas. Jejum sexual é das proibições mais generalizadas. Outras: não casar, não fazer festa, não bater em crianças, não trabalhar.  Para dar sorte: visitar sete igrejas; guardar as flores que enfeitarem o esquife do Senhor Morto na procissão do Enterro; comprar aneizinhos e correntes de prata na 6ª feira da Paixão.

Páscoa
Páscoa, a  festa mais importante do cristianismo, é pré-cristã e provém do costume pagão muito antigo de comemorar a entrada da primavera no hemisfério norte, coincidindo com o equinócio de primavera em 21 de março, quando termina o longo e rigoroso inverno e retorna  o calor, o sol,  a vegetação; os coelhos saem das tocas e são vistos pulando pelos campos. A vida se renova.
O Antigo Testamento descreve a pessach (páscoa) dos hebreus que é a passagem da escuridão para a luz, ritual que celebra a libertação, por Moisés, do povo hebráico  escravizado pelo faraó do Egito. É a conhecida estória das sete pragas enviadas por Deus, a fuga dos hebreus e a abertura do mar Vermelho para permitir sua passagem.  
A Páscoa cristã, como ritual do Novo Testamento, não é mais do que a reinterpretação daquele episódio: a ressurreição de Cristo é o símbolo da libertação dos hebreus ou  a passagem da escuridão para a luz; a hóstia, metáfora do corpo de Cristo é o pão ázimo (sem fermento – na fuga do Egito não havia tempo para esperar a massa fermentar); o vinho, tradicional da ceia dos hebreus, significou o sangue de Cristo – tudo representado na cerimônia da Páscoa  e na missa tradicional da cristandade.
Em inglês a Páscoa chama-se easter, derivado de Eostre, deusa germânica da fertilidade, celebrada no equinócio da primavera com seu símbolo o coelho.
Na Escócia a Páscoa é conhecida como Paiss.
A Páscoa  é uma festa móvel anual cuja data é referência para se estabelecer as outras datas festivas. A primavera no hemisfério norte tem início no dia do equinócio de primavera:   21 de março. No primeiro domingo de lua cheia a partir de 21 de março, a cada ano, comemora-se a Páscoa. Este calendário obedece a uma tabela  lunar  estabelecida por um astrônomo grego chamado Meton,  em 430 antes de Cristo. Meton tabulou um ciclo de 19 anos solares e 235 meses lunares chamado Número Áureo que estabelecia o ano com 365 dias aproximados. Pela relativa precisão e praticidade, foi utilizado nos cômputos eclesiásticos.
 Tendo como referência a Páscoa, determinam-se o carnaval, 46 dias antes, e Pentecostes, 50 dias depois.

O coelho, em muitos países, é o totem da Páscoa porque simboliza a fertilidade, vale dizer, a conservação da espécie, o recomeço da vida. O mito foi trazido ao Brasil pelos imigrantes alemães cerca do século XVIII

E o ovo contém em si uma vida nova. A ressurreição, portanto. Em muitas culturas antigas, como na chinesa, tinha esse significado e ovos de ouro e pedras preciosas eram dados como presente a pessoas importantes.
Mas em alguns lugares o coelho da Páscoa é substituído, como em Paris  por exemplo, pela galinha .

Queima de Judas
Esta é realizada geralmente no sábado de Aleluia. Provém do rito ancestral do Fogo Novo, de origem hebraica que sobreviveu no rito romano recodificado. O Fogo Novo comemorava festivamente o fim do inverno no hemisfério norte quando as comunidades acendiam grandes fogueiras ao lado dos templos e os sacerdotes benziam o fogo. Geralmente rapazes saíam em bandos gritando : “Fogo Novo!”  A igreja cristã adaptou o ritual pré-cristão aos seus desígnios, primeiro denominando-o de Fogo de Judas e depois realizando a queima de um boneco (costume comum na Idade Média) que simulava o traidor de Jesus. É   prática encontrada hoje em quase toda a Europa.



Leituras sobre este texto: Uma leitura transdisciplinar do fenômeno sonoro  (Sobre Recomenda de Almas) de Sonia Albano (org); Folclore das festas cíclicas, de Rossini Tavares de Lima