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domingo, 23 de junho de 2013


A descoberta deste  poema lindo e significativo sobre Beethoven, ou melhor, dirigido a Beethoven,   por Carlos Drumond de Andrade, me deu um desejo enorme de falar um pouco sobre o tema: meu compositor predileto e meu poeta predileto.  Encontrei-o na Revista OSESP, nº 3,  de 2013.

Este genial poema de Carlos Drumond de Andrade constitui uma análise delicada e ao mesmo tempo profunda  do pensamento e da postura de Beethoven diante da contingência de sua vida, que ele extravasa por meio da música, colocando nela a razão de resistir e viver,  de pertencer a um mundo hostil porém feito de seres humanos que ele considerava fraternos.  Por isso mesmo, os difíceis caminhos deveriam conduzir à alegria.  O exemplo é explícito  na Nona Sinfonia, uma das obras máximas da criação humana em música, cuja escrita foi feita quando o compositor contabilizava total e absoluta perda de audição e, mergulhado no mais profundo silêncio, ouvia os sons dentro da  cabeça e do coração, como afirmou. Pois bem, a Nona Sinfonia é extensa e complexa, uma síntese da essência da visão de mundo de Beethoven, com seus quatro movimentos que percorrem caminhos difíceis mas termina com o grande movimento coral  que canta a Ode à Alegria, do poema homônimo do poeta alemão Schiller. É um hino à alegria e à fraternidade universal. Esta peça é considerada o Hino da Humanidade e, não por acaso,  foi escolhida como hino da Comunidade  Europeia.  Quando foi estreada em 1824, em Viena, o compositor, no palco, de costas para o público não conseguiu ouvir sequer os aplausos entusiásticos.  Só se deu conta quando  uma cantora do coro chamou-lhe a atenção.  “ Em toda a história da música nenhum músico, com uma convicção tão profunda, terá concebido sua obra como uma doação e uma missão a serviço de toda a humanidade.” (Jean & Brigitte Massin, História da Música Ocidental)


O lema da Revolução Francesa era o paradigma da vida de Beethoven: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

         No poema, metáforas e simbolismos misturam a semântica da música com a ética e a estética de Beethoven, envolvem  fatos da sua vida  (os desamores, a cruel surdez) e o trazem muito naturalmente à modernidade ( computadores, maconheiros, pickup) coroando a genialidade do, como não poderia deixar de ser,  Carlos Drumond de Andrade,   O poeta. Uma possível interpretação:

 

BEETHOVEN

                                         Carlos Drumond de Andrade.

Meu caro Luís, o que vens fazer nesta  hora

de antemúsica pelo mundo afora?

 

Patética, heroica, pastoral ou trágica,

(referência  às obras: Sonata Patética, Sinfonia Heroica e Sinfonia Patética)

tua voz é sempre um grito modulado,

um caminho lunar conduzindo à alegria.

(Sonata ao Luar e o coro da Ode à Alegria)

Ao não rumor  tiraste a percepção mais íntima

Do coração da terra que era o teu.

(não rumor: a surdez)

Urso- maior uivando a solidão

(foi chamado de urso pelo temperamento irascível, no fim da vida)

Aberta  em cântico: entre mulheres

passando  sem amor. Meu rude Luís,

(sem amor: teve vários amores mas não conseguiu realizar nenhum)

tua  imagem assusta na parede,

em  medalhão soturno sobre o piano.

(Imagem severa e angustiada em quadros e bustos colocados tradicionalmente sobre o piano)

Que tempestade passou em ti e continua

a devastar-te no limite

( sonata chamada de A Tempestade)

em  que a própria morte se socorre

da vida, e reinstala

o  homem na fatalidade de ser homem?

(menção ao Testamento de Heiligenstad onde Beethoven revela que esteve à beira do suicídio devido à surdez mas foi salvo pela arte. “Ah, parecia-me impossível deixar o mundo antes de ter dado tudo o que ainda germinava em mim!”)

Nós, os surdos, não captamos

o  amor doado em sinfonia, a paz

em  allegro enérgico sobre o caos,

(sinfonia, forma orquestral; allegro, indicação de andamento na música)

que  nos oferta do fundo

de  teu mundo clausurado.

(Mundo clausurado: ausência total de sons)

Nós, computadores, não  programamos

a exaltação romântica filtrada

(estilo romântico da sua obra)

em  sonatino adágio murmurante.

(Sonatino, de sonatina, forma musical; adágio, indicação de andamento)

Nós, guerreiros nucleares, não  isolamos

o  núcleo de paixão de onde se espraia

pela  praia infinita essa abstrata

superação  do tempo e do destino

que é a razão de viver, razão florente

e grave

 

Tanto mais liberto quanto mais

em  tua concha não acústica cerrado

livre da corte, da contingência, do barroco,

erguendo  o sentimento à culminância

(A surdez, concha não acústica, isenta-o de seguir estilos como  barroco,  e gostos da corte elegendo o sentimento o bem mais alto)

da  divina explosão que purifica

o  resíduo mortal, a angústia mísera,

que  vens fazer, do longe de dois séculos,

escuro  Luís,  Luís luminoso,

em nosso tempo de compromisso e omisso?

 

Do fogo em que te queimaste,

uma  faísca resta para incendiar

corações  maconhados, sonolentos,

servos  da alienação e da aparência?

Quem comporá a Apassionata do nosso tempo,

( Sonata Apassionata, uma das obras mais famosa)

Quem  removerá as cinzas, despertará a brasa,

Quem  reinventará o amor, as penas do amor,

(as penas do amor: sofrimento pelos amores frustrados)

quem  sacudirá os homens do seu torpor?

 

Boto no pickup o teu mar de música,

nele me afogo acima das estrelas.

 

Um comentário:

  1. Nossa, amo Drummond; amo Beethoven. Eu nunca vou esquecer como eu conheci música clássica: minha mãe tinha ganhado um CD do beethoven em uma rifa. Eu era adolescente e coloquei o cd no rádio para ouvir. A primeira música do cd era sonata ao luar. Foi a coisa mais incrível que eu tinha escutado. Acho que Drummont conseguiu captar bem como a música de Beethoven alcança nossos sentimentos mais profundos.Obrigada por divulgar o poema; eu não conhecia.

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