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sábado, 30 de outubro de 2010

Kurt Weill e Bertold Brecht, uma parceria notável para a música dramática do século XX - e a instigante prostituta Jenny / Geni

Kurt Weill e Bertold Brecht, uma parceria notável para a música dramática do século XX. E a instigante prostituta Jenny/Geni

Eu sempre tive curiosidade de conhecer um pouco mais da relação que envolve quatro óperas conhecidas, sendo uma delas brasileira, tão erudita quanto as outras, porém criada no âmbito da cultura popular e com as liberdades que esta lhe permite. Meu foco são as obras de Kurt Weill e Bertold Brecht, a Ópera dos Três Vinténs e Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny. As demais, envolvidas nesta comparação são a Ópera do Mendigo, de John Gay e Pepusch, do século XVIII, e A Ópera do Malandro, de Chico Buarque. E o leitmotiv é a personagem Jenny / Geni, a prostituta execrada.
As quatro óperas têm o mesmo conceito na estrutura das peças, na caracterização dos personagens – malfeitores, assaltantes, rufiões, prostitutas- traidoras; na ambientação – um sub-mundo social; nas estórias – corrupção e exploração; e até na encenação de uma parada, na cena final.
Por incrível que pareça, ao pesquisar Weill e Brecht, encontrei até Bob Dylan, vejam só!
Kurt Weill nasceu em Dessau, Alemanha, 1900, e morreu em Nova York, 1950. Filho de um cantor litúrgico judeu, que lhe deu educação rígida e meio esnobe, era tímido e devotado à música. Na juventude quis ir para Viena estudar com Schoenberg mas, como a situação financeira da família não permitiu, foi para Berlim e estudou com Ferruccio Busoni (ítalo-germânico, 1866-1924). Em Berlim se surpreendeu com a complexa linguagem sinfônica de Mahler e o apelo popular de Strawinsky na História do Soldado. Busoni era um mago da música do início do século XX, um cosmopolita num contexto nacionalista, um pragmático quando dominava o absolutismo estético. Muito ensinou a Weill e, principalmente, a “não ter medo da banalidade” – na época, tudo o que era italiano ou francês. Weill se desenvolveu musicalmente com a abertura, a liberdade e a inovação vigentes.
Berlim, no período entre as duas guerras mundiais, era uma cidade de possibilidades ilimitadas, onde tudo era possível. Conviviam comunistas, nazistas, social-democratas, nacionalistas, com expressionistas, dadaístas, românticos anacrônicos. Era a cidade dita “sem pudor algum”.
Os jovens compositores alemães aderiam aos ritmos do Jazz, ao ruído das máquinas da indústria e se envolviam com a cultura popular. Queriam efetuar a união da música erudita com a vida moderna.
Weill desenvolveu a teoria do caráter gestual da música – o Gestus – o momento em que a pantomima, a fala e a música dão origem a um lampejo de significação. Escreveu o ensaio Sobre o Caráter Gestual da Música, em 1928.
Bertold Brecht, alemão, viveu de 1898 a 1956. Foi poeta e dramaturgo, um dos maiores autores alemães e um dos mais relevantes literatos do século XX. Para o teatro, continua a ser extremamente importante até hoje. Suas obras tem dimensão pedagógica; é contrário à passividade do espectador. Marxista, defendeu formar/estimular o pensamento crítico.
A partir de 1927, Brecht se une a Weill e juntos vão criar óperas memoráveis. Brecht apreciava os fora da lei, os corruptos, pessoas sem princípios e a crueldade, categorias exploradas na Ópera dos Três Vinténs e na Ascenção e Queda da Cidade de Mahagonny. Aliás, em Berlim e em Weimar havia uma obssessão pela figura do mau, do assassino, do malfeitor retratado na arte. (Lembre-se o cinema expressionista alemão)
A Ópera dos Mendigos ( The Beggar´s Opera) criada na Inglaterra em 1728 por John Gay e Pepusch, tem como protagonista o capitão Macheath, pessoa sem escrúpulos, conquistador de mulheres, um gênio do crime cujo caráter audacioso é o tempero da sua sorte. A ópera satiriza o interesse das classes altas pela ópera italiana, ataca estadistas, regimes corruptos e criminosos conhecidos. Macheath acaba traído pela prostituta Jenny (e outra chamada Sukey) e é condenado à morte. Foi criado como sátira dos políticos corruptos da época de John Gay.
A Ópera dos Três Vinténs é uma alegoria da Ópera dos Mendigos. Nela, o Macheath de Weill/Brecht, chamado Mack, o Navalha, embora encantador é mais terrível, um psicopata que mata por prazer e por dinheiro. Jenny, a prostituta, sonha em vingar-se dos homens que a exploraram. Com a chegada de um navio de piratas, ela pede a eles que destruam essas pessoas. Há uma canção-tema que ficou famosa, conhecida como “balada do assassinato” na qual são relatados homicídios como o desaparecimento de homens ricos, sete crianças mortas num incêndio, uma jovem estuprada e a morte de Jenny Towler, com uma faca no seio.
Olhe a Jenny, aí.
A canção Mack, o Navalha, na década de 50, entrou para o repertório popular americano, ganhando variantes nas vozes de Louis Armstrong e Frank Sinatra. Armstrong, de brincadeira, acrescentou à letra da música, mais vítimas de Mack, entre outras: Jenny Diver, sweet Lucy, Lotte Lenya (cantora e amante de Weill).
Olha a Jenny outra vez...
Em 1962, foi apresentada uma revista no Theater de Lys, em Greenwich Village, Nova York, chamada Brecht on Brecht, em cuja platéia se encontrava um jovem cantor e compositor de Minnesota, Bob Dylan. Ele se encantou ao ouvir a canção “Pirate Jenny” (Pirata Jenny), da Ópera dos Três Vinténs, na qual a prostituta revela seu desejo de se vingar de seus exploradores. Dylan escreveu em sua autobiografia que os exploradores estavam ali na platéia e que não havia protesto ou crítica social e política na canção. Impressionou-o o refrão que repetia: E um Navio com Oito Velas e Cinqüenta Canhões, em que os versos lembravam a buzina de nevoeiro em Lake Superior perto de sua casa de infância. Dylan imprimiu a linha do Gestus, por influência de Weill e Brecht, em suas próximas composições, dentre elas A Resposta está soprando no Vento, Vai cair uma Chuva Forte, Os Tempos Estão Mudando.
Viram a Jenny ai?
Em 1931, com a relação Weill/Brecht completamente desgastada, é dada a público uma obra prima da dupla: a ópera Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny. Conta a estória da viúva Begbick e seus comparsas, acusados de fraude e lenocínio, que estão fugindo das forças da lei quando o seu caminhão tem uma pane e pára em pleno deserto. Eles resolvem, então, fundar aí uma cidade (referência a Las Vegas). E logo chegam os tubarões: a prostituta Jenny e seus companheiros mal encarados. O vício e a corrupção prosperam, nascem fortunas. Após um furacão que quase destrói a cidade , um lenhador Jim Mahony, a princípio do bem, proclama nova lei: cada um deve fazer o que quiser. Estabelece-se a anarquia e Jim, acusado de não pagar as contas, é condenado à morte. E a cidade também chega à ruína.
O libreto de Brecht costuma ser interpretado como um protesto contra o capitalismo desenfreado norteamericano; ou também pode ser uma crítica à falsa utopia da União Soviética.
A Ópera do Malandro, de Chico Buarque, estreada em 1987, é ambientada na Lapa, bairro do Rio de Janeiro, em 1940, no fim do Estado Novo. A sociedade está repleta de empresários inescrupulosos, policiais corruptos, agiotas, empresários inescrupulosos, contrabandistas que freqüentam bares e bordéis. Há rivalidade entre o comerciante dono do bordel e o chefe contrabandista que acaba se casando em segredo com a filha do primeiro. Gení e o Zepelim constitui um quadro emblemático dentro da representação. Um belo dia chega à cidade um zepelim do qual desce um capitão que ameaça destruir a população a menos que consiga os favores de Geni, a prostituta execrada por todos. Ela se recusa e passa a ser assediada e bajulada hipocritamente pelas autoridades, pessoas importantes, todos os moradores para que aceite o capitão do zepelim. Acaba cedendo. O capitão, satisfeito, vai embora. E todo povo da cidade volta a humilhá-la, cantando: Joga pedra na Gení / joga bosta na Gení /ela é feita pra apanhar /ela é boa pra cuspir /ela dá pra qualquer um / maldita Gení.
Jenny, na ópera Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny é do lado do mal, uma das causas que levaram à destruição da cidade. Nas demais, é mais uma vítima dos contextos sociais injustos ou um veículo da crítica à hipocrisia e aos preconceitos.
Jenny/Gení lembra Lilith, símbolo de mulher sedutora, desafiadora e má. Consta ter sido a primeira esposa de Adão (segundo o Talmud) que partiu do Paraíso para regiões ignotas por não aceitar a obrigação de se submeter ao marido uma vez que era feita da mesma matéria que ele. Há o mito de que foi Lilith que deu à Eva a maçã proibida.
Só para constar, no dicionário Novo Michaellis, inglês-português, 32ª ed., Ed. Melhoramentos, v. 1, encontramos: jenny, substant. comum fem. – fêmea; fêmea de animais.
Seria um preconceito contra todas as mulheres?

Obs: Se quiserem conhecer mais sobre os temas deste texto, aconselho a leitura do livro de Alex Ross, O Resto É Ruído. E a Internet, jogando nomes e títulos no Google.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Episódios engraçados nos palcos da ópera 2

Carmen, de Bizet
Heidelberg (data ignorada)
(Revista L´Express)

Contou o maestro Ian Reid que dirigia a ópera Carmen quando ocorreu um imprevisto: o artista que representava o personagem D. José descobriu tarde demais que se esquecera de munir-se do punhal destinado a apunhalar Carmen na cena final. Desconcertado, ele decidiu, em desespero de causa, estrangulá-la. Apavorada, julgando que ele enlouquecera, a cantora começou a se debater, lutando para se salvar. Mas, boa profissional que era, tentava continuar cantando e assim o fez, com a voz estertorada e enrouquecida até poder “morrer”, afinal, aliviada.

Turandot, de Puccini
Ópera de Roma, 1954

Era a última cena e o cenário exibia as margens de um rio sinuoso numa paisagem oriental. Turandot estava em pé em uma das margens e o tenor Carlo Gasparini na outra, tendo entre eles uma pequena ponte rústica em estilo oriental. O jogo de cena indicado a Gasparini era simples: quando Turandot exclamasse “Mio nome é amor”, ele daria meia volta, atravessaria a ponte em passo acelerado e tomaria a princesa nos braços. No momento exato, ele girou o corpo e atirou-se para ela. Só que se esqueceu da ponte e, quando percebeu, tentou saltar sobre o rio mas, tarde demais, tropeçou e caiu dentro dele. No fim, deixou por pouco de fazer parte do séqüito dos pretendentes a se casar com Turandot que ela havia mandado matar porque não decifraram os enigmas que criara.
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sábado, 16 de outubro de 2010

UM FILME PARA SE PENSAR


Um filme para se pensar...e muitoA Teta Assustada ; uma jornada do medo à liberdade

Direção de Claudia Llosa. Peru, 2009
Vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim em 2009
Concorreu ao Oscar como melhor filme estrangeiro em 2010

Está escrito na caixa do DVD: “Metáfora do rompimento. Um país reprimido que só pode se expressar através do inconsciente: seus mitos, seus medos seus traumas. O corpo de uma mulher expressa o vazio que precisa ser preenchido; a angústia que precisa se acalmar; o pavor de encontrar algo diferente, de perder o controle.”

Este é um filme impressionante, cheio de metáforas, símbolos e mitos e uma realidade cultural que emociona.A história se passa em um povoado no Peru, habitado por descendentes dos índios que sofrem violenta opressão das forças oficiais. É uma sociedade muito pobre, aculturada e que convive com os avanços tecnológicos da civilização. A protagonista, uma bonita moça, amedrontada e tímida, vê sua mãe, uma velha índia, no leito de morte, relatar cantando sua trágica história, por meio de uma melopéia que lembra o cantochão. Ela descreve como, grávida da filha, foi violentada, assistiu ao assassinato cruel do marido e sofreu todo tipo de sadismo e torturas sexuais. O vandalismo era sistemático contra as populações indígenas o que motivou uma situação inacreditável: as mães lançavam mão de uma estratégia desesperada para proteger as filhas inserindo uma batata em suas partes íntimas. O tubérculo lançava raizes e estabelecia um campo asqueroso. E os “fardados”, por nojo, as deixavam em paz. Essa é uma metáfora do rompimento, da libertação – que, na verdade, constituía outra terrível prisão. Essas moças tinham a síndrome chamada de “teta assustada”. Como a protagonista que, traumatizada, tinha medo de sair sozinha, fugia dos homens e se apavorava diante de uma farda.
Ela tenta de todas as maneiras enterrar a mãe de maneira digna mas não tem dinheiro e se emprega na casa de uma pianista para conseguí-lo. Aí, uma simbologia envolve a música: a moça só se expressa cantando, como a mãe. A pianista se prepara para um recital. Mulher branca e fria, não conseguia transmitir emoção e determina que a empregada cante sempre, prometendo dar-lhe uma conta de um colar arrebentado, a cada canção. No recital, sai-se bem e, em seguida, manda a moça embora sem lhe dar as contas do colar. Como se lhe sugasse a emoção e depois a jogasse fora.

A moça conhece o jardineiro da casa e sua bondade, abnegação e paciência acabam por conquistá-la. Ela rouba as contas e finalmente perde o medo e cria coragem para fazer a cirurgia e libertar seu corpo do estigma. Por amor. Esta é outra metáfora da libertação.